sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Apelo na casa do Senhor

Eu não sei... Não sei quem é este que vejo no reflexo do rio. Não sei. Não pedi pra nascer assim com o cabelo ondulado, não pedi. Nem sequer com essa face branca, as pernas tão finas como palitos e orelhas pequenas, miúdas. Não pedi pra ser assim.
Não escolhi a família que tive, não pedi para que meus amigos me deixassem.
Não pedi para a fome me socar toda manhã que acordo.
Não pedi pra ser tão pobre, Meu Deus. Não pedi nada disso. E sei também que não pedi uma casa, nem um carro, muito menos dinheiro, mas mesmo assim ainda não os tenho.
E Eles pediram isso, Senhor? Pediram pra serem tão ricos? Mas são tão patéticos quando passam com suas roupas limpinhas... Me perdoe, Senhor, mas eles são! Dentro do carro alguns trazem até cachorros; e este meu aqui, que chamei de Faminto, passa fome como eu. Mas o amo, por assim dizer. Eles não mentiram quando ouvi eles dizerem que o cão é o melhor amigo do homem. Eles são mesmo. Faminto nunca come minha comida, ele sabe que também preciso comer. Senhor, se um dia eu vir a partir, não deixa Faminto sozinho. Ele é meu amigo, ele me ama, me enxerga, me ajuda, me beija toda amanhã em que acordo. Creio ser a forma dele dizer: "Oba, hoje não caçarei comida sozinho. Meu dono está vivo, vivinho da Silva!"
Ele me faz sorrir. Faminto é tudo pra mim.
Mas isso eu não pedi. Nunca. Mas pediria... eu sem o Faminto, o que seria?
Afinal, somos parecidos. Me sinto como ele diversas vezes: um cachorro abandonado. As pessoas nos vê na rua e acham natural. Faminto e eu somos expulsos de todo o lugar. daqui, saía, eles dizem. E somos obrigados a sair, senão chamarei a polícia pra você, seu vagabundo! E então eu venho pra cá, Meu Deus. O padre nunca me expulsou de tua casa, em vez disso me dá bom dia, me dá um pão. Hoje mesmo ofereceu-me um. Mas hoje não vim trazer-lhe boas notícias. Vim contar-lhe o que me angustia. Duas semanas atrás guardas municipais parados do outro lado da calçada, na mão trazendo uma prancheta, vieram me entrevistar. Eles queriam meu nome... Me levaram para uma entidade de moradores de rua, lá tomei banho, comi, e tive uma cama quente pra dormir, mas meu Faminto não estava comigo, Meu Deus. Levaram ele de mim. A carrocinha o levou. Vão apagá-lo, eu sei. O que será de mim? O que será de mim?
Os homens não sabem nada de nós. Acham que resolvem tudo nos colocando num cubículo de um cômodo onde dormem 40, 50 de nós. Um cheira, o outro fuma, a outra somente tu sabes o que apronta, mas há pessoas boas entre nós, Senhor. Então sejais justo conosco. Não pedi pra nascer miserável. Eu queria ter um carro também. Queria ter um pai e uma mãe que me acordassem dizendo bom dia. Queria ter uma louça pra lavar, um jornal para buscar de manhã na calçada. Queria ter um endereço, uma família... uma mulher, e um filho que eu pudesse chamar de meu.
Não pedi esta vida Senhor. Estou eu pagando os pecados de outra vida? Mas por que és tão severo comigo? Tu que dais tudo aos homens, por que não dais a nós também?
Eles não nos entendem, Meu Deus. Não nos ouvem. Acham que somos loucos. Bom, maioria de nós não aguentam esta vida e piram de verdade... Inevitável, admita.
Eles não me deram a mão, Meu Deus. Mas isso eu admito, Senhor, não é por falta de pedir.
Eu peço ajuda, eu peço amor, eu peço uma luz. E nada disso vem ao meu encontro.

Não pedi... Não, não pedi... pra ser invisível, porque toda amanhã pessoas vão e vêm - do trabalho, pra casa; da casa pro trabalho, e assim vai - e eu fico aqui, Meu Deus, parado no tempo, deitado na porta de uma padaria, mendigando uma moeda qualquer. Pode ser de dez, de cinquenta ou um real. Eu quero um pão, quero um banho, eu quero uma vida. Eu não pedi pra ser assim.
Ninguém pediu que fosse assim, mas então por que não fazem diferente?
Por que não nos ajudam, Meu Deus?
Somos teus filhos... mas eles são mesmo meus irmãos?
Meu Deus, Faminto se foi... Hoje passarei a noite só. Eu e o silêncio das avenidas. Ao chegar da noite, as pessoas se recolhem para suas casas, apagam as luzes, fecham as janelas, e dormem... E eu passo a noite inteira iluminado pela falha luz do poste, e ao olhar das estrelas que me observam.
Eu não pedi pra ser assim. Ninguém pediu...
Mas não pode ser diferente?!


16 comentários:

  1. Aqui, neste começo de noite e antes que ela acabe, vindo para me embriagar com sua sensibilidade!
    Bj*

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  2. Não consigo ver cenas e pessoas assim desse jeito, me dá uma pena, uma dor no peito, uma impotência. Então evito. beijo

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  3. Colocastes algo real e triste em belas palavras.
    Beijos

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  4. Claro que pode ser diferente. A vida hoje é corrida demais. Não sobra tempo para ajudar ninguém. Devíamos sim, ajudar. Não custa nada. Mas sabe, bate aquele receio de que, "se eu ajudar, será que ele vai beber? Ou comprar droga?"
    Mas mesmo assim, acho válido pensarmos um pouco sobre isso. E porque não ajudar?

    Tem selo pra ti no meu blog, flor.
    Beijos.

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  5. Franck: Obrigada Frank por sua presença aqui! É sempre bem-vindo, sabes disso!

    Natália: Dó não é um sentimento bom... mas não conseguimos evitar, não é mesmo? Eu não pedi pra nascer numa família restruturada financeiramente, nem eles na miséria, mas devemos agradecer a Deus por isso mesmo assim! Principalmente nós por termos o que temos.

    Daninha: Obrigada, flor, suas palavras aqui que são belas. Obrigada pela visita. Logo a retribuirei. Saudades de ler-te.

    Larissa: Sua presença ilustre aqui, haha. Fala que eu te escuto, coração! Adoro quando você vem soprar por aqui, tu sabes disso, não? sempre diz algo que me faz refletir. Sempre! Mas sabe, ontem depois de eu ter escrito este texto, aqui em casa chegou uma carta... acho até que é o destino dizendo que posso ir mudar o mundo com apenas uma ajuda. Veio uma carta de uma associação de ajuda contra a fome. É global. E então no verso veio, como sempre, o boleto para ajudar financeiramente. E lá tinha os valores, e para onde se ia. 86% para as crianças, 11% para conseguir mais doadores, pois como dizem eles próprios, necessitam de dinheiro para fazer os impressos que chegam até nossas casas... E como eles mandaram planfetos, viu? E outros 3% vão para administração...
    E então, como não trabalho, fui toda contente para minha mãe: Mãe, chegou isto.
    E então ela me olhou com uma cara de que não acredita em nada que eles dizem... E é verdade. Minha família ajuda um Asilo daqui de onde moramos. Damos mensalmente uma quantia. É um Asilo da prefeitura. Outro dia fui fazer uma visita lá, algum dia escreverei sobre isso. Foi tão triste... embora uma lição de vida.
    E quando a gente ajuda essas associações, não há 100% de transparência. Se as pessoas fossem mais sinceras uma com as outras, o mundo seria sem dúvida melhor.
    É por conta das pessoas más, que as pessoas boas sofrem.
    Acreditar ou não acreditar? Eis a questão.
    Sobre o selo, obrigada de coração. Logo mais estarei em seu Blog para buscá-lo.


    Um beijo a todos.

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  6. As vezes não pedimos as coisas, mas elas simplesmente acontecem. Os obstáculos, por exemplo, os desafios, coisas que temos que enfrentar todos os dias.

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  7. "Somos teus filhos... mas eles são mesmo meus irmãos?"


    Ótima reflexão.
    Você fez todo mundo que leu ter a percepção de quem está passando pelo problema, de quem está na calçada enquanto os demais andam em direção para suas casas e trabalhos...

    Beijo!

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  8. Sabe,nem sei o que comentar direito.Eles pensam que estão certos mas não estão,tiram o Faminto dele,a única coisa que ele teve,ou melhor,amou.
    A realidade do mundo é um tanto cruel,por que nãos e pode mudar?precisamos de ajuda,não da ajuda feita,com papel e caneta,mas a ajuda de chegar e perguntar "Ei,vou te ajudar do que está precisando".Indo pra escola vejo um viaduto onde muitos passam a noite,chamamos aqui de boca do lixo,antigamente nem gostava de passar ali.Porém é uma realidade a ser vista,não podemos fechar os olhos pra isso.Se pelo menos ele tivesse o faminto,estaria melhor.
    Beijos gabs,sem palavras o texto fez eu pensar em muitas coisas que poderia mudar.

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  9. Muito bom texto Gabii,
    você conseguiu incorporar todas essa pessoas que clamam por se expressar, mas não conseguem, não tem oportunidade.

    ADOREI seu canto.
    Já te sigo ..


    Ps: Vi seu comentário láá ^^, concordo com tudo que você falou e minha filosofia de vida é essa: VIVER SEM QUESTIONAMENTOS. Mas acontece que as vezes é inevitável, e os versos foi a representação de uma dessas vezes ;D

    Adorei você, espero ver mais comentários seus !

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  10. Minha profunda indignação por este estado de coisas de injustiça em nossa sociedade. O texto é fiel ao tema e tem sido abordado por muitos escritores. Ontem li um artigo bem escrito tambem no blog amigosdepelotas.com . Um abraço Eduardo

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  11. Uauu Gabi!

    Que texto maravilhoso, forte e intenso.
    eu levo ele como um protesto.

    Sabes, eu acho que um dia ainda verei muitos livros teus sendo lançados.

    Não deixe de escrever, escreva sempre.

    Te abraço. Me abraças.

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  12. Que triste... Acho mesmo que não é Deus quem escolhe pra alguém uma vida dessas. A sociedade é injusta, poucos tem muito, muitos não tem nada, é um problema que às vezes fico matutando, pensando se algum dia vai existir solução... Poderia ser diferente sim, mas como? Acho que o amor é a solução, mas como tirar o egoísmo de dentro do coração de todas as pessoas? Difícil...

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  13. me dá uma tristeza de ver um ser humano chegar numa situação dessas...

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  14. Nem sempre temos respostas para o que avida nos coloca, cada um tem sua história para fazer, as formas náo nos agradam mas em muitois casos náo podemos interferir e quando podemos muitos náo o fazem de medo.
    Obrigada por seu carinho, beijo Lisette.
    O blog existe porque hoje tenho um anjo no céu chamada Alessandra.

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  15. Ain, que tristeza! Me deu uma agonia tão grande aqui!
    Sem palavras, adorei, triste, verdadeiro!

    Beeijos.

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  16. Oi Gabriela.

    Ótimo texto. O diálogo com Deus é sempre bom. Realmente, nem tudo acontece como gostariamos e temos que nos adaptar a isso. As pessoas estão cada vez mais mesquinhas pensando em si mesmo sem olhar o próximo. Mas não podemos nos prender a isso. Precisamos fazer sempre o nosso melhor ignorando as circunstâncias de vez em quando, afinal, somos responsáveis por nós mesmos.

    Abraço,

    Thiago

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