segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O direito de uma vida

Há coisas que não se podem explicar, e Laura possuía uma porção delas. Terceiro ano de faculdade, exerceria a profissão que tanto admirava: Medicina. Foi então depois de sua primeira aula de anatomia que se viu cruzando a porta da diretoria.
- Não posso, ela disse.
O diretor que parara de examinar os papéis a sua mesa e estendera a mão para que Laura se sentasse, agora estava com os braços cruzados, as costas apoiadas em sua cadeira giratória, com uma expressão de desentendimento.
- Não posso, ela repetiu agora fitando as unhas mal feitas.
- O que não pode, Laura? Disseram que você tinha algo de importante pra me dizer, mas ainda não compreendo do que se trata.
- O curso. Não posso mais...
E quando deu por si, soluçava. Suas lágrimas escorriam por seu rosto agora pálido, cabisbaixa via as lágrimas caindo frenéticas em seu colo.
- Por que choras? Alguém aqui lhe fez mal?
Não obteve resposta. O diretor muito antes tranquilo agora se desesperava com a situação da garota. Era uma de suas alunas de melhores notas, e agora ele não compreendia porque desistia de tudo.
- Vai desistir do curso, Laura?
Ela assentiu com a cabeça, engolindo o choro.
O diretor se ajeitou no acento, aproximando seu rosto da papelada que havia abandonado antes, e por fim disse:
- Laura, creio que seja melhor você tomar um copo d'água, pensar melhor. Sabes que muitas pessoas gostariam de estar em seu lugar agora, não sabe?
Não, não gostariam pensou ela. E ele continuou:
- Se largares o curso, sinto muito... Não poderás voltar depois. Pense bem. Você será uma ótima doutora, não me resta dúvida. Vá e pense melhor. Quando tiver certeza volte e assinaremos os papéis.
Laura levantou-se da cadeira a pulsos, como seu corpo a empurra-se para fora da sala e sua alma ainda estivesse ali.
Não, eu tenho de fazer.
E então virou-se de volta ao diretor ainda sentado à mesa e disse:
- Assine.
- Mas... mas...
- Assine. Eu desisto.
- É uma pena, Sta. Souza. Sentiremos sua falta. Mas não se preocupe, se assim é que queres, providenciarei.


Laura entrou em seu apartamento cambaleando, apoiou-se na estante onde ficava sua pequena TV de 24 polegadas.
Me sinto exausta...
Laura deitou-se no sofá, e caiu no sono.

- Eu sinto muito Laura.
- Todos nós sentimos a falta dele...

E acordou transpirando, entrou no banheiro e tomou uma ducha gelada.
Isso não pode estar acontecendo. Não pode. Não acredito. De tantas pessoas, por que ele? Por quê?
Ainda com a toalha enrolada em seu corpo, Laura sentou-se na beira da cama e ficou a se fitar no espelho. Levou a mão aos cabelos ainda molhados e observou o quão grande eles estavam agora. Preciso cortá-los, como o tempo passou. Fitou as unhas roídas e relembrou da cena da diretoria. Comprimiu o choro, levantou-se e escolheu um vestido.

A FPM (Faculdade Pública de Medicina*) aceitava por ano cerca de 40 corpos de indigentes para estudos. Pessoas que morreram sem ser reconhecidas, sem família ou identificação eram usadas por alunos do terceiro ano de curso para o maior entendimento do corpo humano.
Fora numa quarta-feira em que Laura teve sua primeira aula. Uma sala resfriada, cheia de macas enfileiradas, os corpos ainda cobertos. O professor Marcelo de anatomia, pedira para que cada aluno se postasse ao lado de uma delas e esperasse até que ele dêsse ordens para que os lençóis fossem retirados.
Laura esperou, ouvira todas as explicações, e quando o professor deu sinal para que levantassem o pano, Laura chocou-se ao ver quem estava em sua mesa: seu irmão.

Vestida com um tom carmim, Laura entrara num apartamento da Avenida Paulista. Número 51 era o de sua mãe.
- Ela não está; por que não ligou antes, dona?
- Preciso falar com ela pessoalmente, Marli. Se ela voltar, diga para passar em casa, está bem?
- Pode deixar.
Laura cruzou a Avenida se sentindo suja. Tanto tempo perdido, tantas lágrimas e preocupação.
Ele fugiu. Fugiu! Era sua mãe em suas recordações berrando na mesma sala da qual minutos atrás ela saíra.
- Mas por que fugiria?
- Brigamos. Ele disse que eu não o amava mais, que priorizei a vida inteira você...
- Eu?! Mas que ingrato. Tudo o que tenho hoje é porque lutei.
- Lutei também, querida, por vocês dois... e ele me disse coisas tão horríveis... Saiu apressado, nem fez a mala. Mas não tenho esperanças que volte.
27 anos, solteiro, foragido de casa. Por que fugiria? Mas isso não mais importava, depois de 2 anos de tanta espera, fora encontrado pela própria irmã numa maca qualquer dado como indigente.
Pudera ela abrir o corpo de seu irmão?! Analisar os nervos cranianos olfativo, ótico, motor-ocular, troclear, trigeminal ou abducente? Poderia ela abrir o peito dele e constatar um coração há muito tempo morto, um coração de quem crescera junto dela, de quem brincara com ela, de quem fugira mais tarde dela?
Um ser humano que fora amado e não reconhecido. Que teve uma família e a abandonou, que poderia ter filhos e não teve. Que poderia ter sorrido e chorado um pouco mais. Um ser humano real, com sentimentos...
Laura percebeu que não conseguiria então mais exercer a profissão que tanto amava, não poderia analisar um corpo... Não o corpo que fora de seu irmão.
Sem palavras, Laura correu, correu até a saída da sala, sem parar para ver todos voltados à ela, assustados com sua reação; correu e esbarrou na parede do corredor, e lá recostou a cabeça e chorou, chorou.
Marcelo, seu professor, a seguiu. Após contá-lo tudo que acontecera, ele disse por fim:
- Não se preocupe, querida. Agora que o reconheceu, ele terá um enterro digno. Eu sinto muitíssimo.
Obrigada fora tudo que conseguira dizer.




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Diário de um coveiro
(Conto de 2009)

12 comentários:

  1. NOSSA. Tão denso mas tão leve de ser lido! Infelizmente tantas pessoas desistem da vida, da família, assim, por uma briga qualquer, por um motivo qualquer. =/

    Engraçado, Laura é o nome da minha irmã gêmea (ela também tem blog!) e acho tão lindo! rs. Não, ela não faz medicina, hehehe.

    Beijos, feliz 2011!

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  2. Caramba,nem sei o que faria numa situação dessa.Não digo que largaria o curso,mas seria doloroso continuar,lembrando disso.
    Bom conto!

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  3. Profundo. A vida nos pregra muitas peças e nem sempre é fácil de lhe dar com certas surpresas. É tudo que consigo dizer.

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  4. Acho que eu nunca serviria prase doutora nem nada que envolvesse dissecações e coisas do gênero. Essa história é realmente dramática. Que forma de encontrar alguém desaparecido! Infeliz coincidência... Mas médico também são humanos e eles não tratam entes queridos. Laura devria pensar nisso antes de desistir...

    :) Muito bom!

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  5. "A vida as vezes das uns dias de segundos cinzas e o tempo tic tac devagar.."

    A situação é um tanto quanto anormal, mas a forma como consegues encaixar as palavras e fazer do pesado leve sempre me agrada e continua a agradar, mesmo que no final (e isso é ótimo) nos faça sentir todo o peso da história lida com tanta facilidade. Senti sua falta.

    Desculpa, só vou vi teu selinho agora! Obrigada por lembrar de mim.

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  6. Hey Gabriela! :) Tipo, tem realmente muito tempo que não venho aqui!Acho que você nem lembra mais do meu humilde blog, tudo bem se não lembrar, eu não ligo! HDUSHU afinal, já tem quase um ano acho :S Mas enfim, adorei o texto *-* É ótimo, assim como tudo que você escreve! Você tem talento Gabi :D Beijos

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  7. Nossa Gabi!

    Era o irmão!!! deve ter sido um treco no coração da moça...

    Beijo querida!

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  8. Nossa,que texto forte!Adorei!
    Por isso que quando decidi minha profissão,não quis nada ligado à medicina ou à vida.É uma grande responsabilidade.Necessário muita atenção e estômago forte!
    Gostei muito do seu blog :)

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  9. É uma leitura que se faz e vc entra na histório, mergulha...um tanto quanto triste...talvez isso tenha despertado em mim o interesse de comentar e dizer que gostei, certamente o que mexe, é impactante, o que causa desconforto nos sensibiliza mais...

    fiquei imaginando a cena...faço enfermagem e tive aulas de anatomia...e não me vejo na situação...como reagiria...tenso..

    Linda...aproveitando, postagem nova viu...não aguentei, rs, postei logo a 2ª parte da serie.

    abraçOOo

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  10. Fiquei muito chocada, mais ainda quando disse que era o irmão dela. Porque também tenho um irmão. Levei um baque. Muito bem escrito. Beijo

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  11. Gabriela, excelente teu cantinho, com certeza retornarei e colherei muitos frutos viçosos.

    Abraços

    Priscila Cáliga

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