sábado, 5 de março de 2011

Me dê um minuto para lhe contar tudo

Antes de comerçarmos. Nota da autora:
Notei que um dos meus textos mais lidos daqui do Universo Paralelo, tem sido o conto da garota que narra toda a sua história desde o abandono do pai. Decidi então, neste Carnaval chuvoso, continuá-lo. Não esperem um próximo capítulo assim tão depressa desta vez não quero forçar o conto, quando esta me vier à cabeça, prossiguirei.
Logo esclareço que se trata de um Conto, não é nada real. Apenas, é claro, para a pobre-garota-ainda-sem-nome.

(Você pode ler o Início aqui)

₪⌂₪

II

Não demorou muito para que os problemas de saúde aparecessem em vovó. Começaram, então, as baterias de exames: sangue, cardiologia, esteira. Lembro-me dela ter pego o tênis de corrida de mamãe, mas este, ela nunca devolveu.
Assim como vovó, mamãe também mudava. Durante o decorrer do ano em que estávamos morando naquela casa, a barriga de mamãe cresceu. Foi então que mamãe me contou que estava grávida, esperava um bebê que, de acordo com ela, seria meu meio irmãozinho, mas como eu era muito pequena, não entendia muito dessas coisas. Lembro-me também de ter passado a noite inteira pensando no que faltava para que o bebê fosse meu irmão por inteiro.
No meio da mesma noite ouvi o ranger da porta de meu quarto, me surpreendi ao sentir a mão de vovó em minha testa. Naquele momento, eu continuei a enganar que dormia. Mania, pois mamãe se zangava toda vez que me via acordada até tarde da noite. Vovó me deu um beijo e sussurrou um pedido de desculpas quase inaudível.
Vovó estava nos mandando embora.

Logo de manhãzinha, mamãe aprontou nossas malas. E o silêncio, mais tarde na estrada, predominou o carro, como da última vez em que saímos de casa.
Pensei em dizer alguma coisa desta vez, algo reconfortador, mas nada que uma garotinha de 12 anos dissesse iria fazer diferença.
A verdade é que eu nem sabia para onde íamos, se é que tínhamos aonde ir.

Foi então que acordei com mamãe me cutucando o ombro esquerdo. No meio do trajeto, cansada acabei adormecendo. Enquanto esfregava os olhos, notei que nem sabia o quanto havíamos andado, nem mesmo onde estávamos. Pensei que tudo aquilo talvez fosse um pesadelo, mas infelizmente, quando olhei, ainda meio grogue, para fora da janela, vi que aquilo era mesmo real. A minha realidade.
Paramos em frente a uma casa amarela. O jardim era grande, e na garagem podiasse ver dois carros estacionados.
Mamãe olhou para mim enquanto desatava os cintos de segurança, ela não sorria. Olhando no espelho seu rosto pálido, mandou que eu permanecesse no carro enquanto ela iria sair para resolver alguns problemas.
Assenti de cabeça, e ela saiu.
Fiz exatamente o que mamãe instruíra, fiquei dentro do carro o tempo todo.
Lá fora, depois que mamãe apertara a campainha, um rapaz alto e louro abriu a porta da casa, mamãe o abraçou e em seguida ela entrou.
De dentro do carro fiquei a observar as crianças da vizinhança que brincavam no quintal com a piscina de plástico. Aparentemente três irmãos, todos louros - assim como o rapaz que abrira a porta para mamãe - estavam vestidos com roupa de banho. Ao lado da piscina, o menor deles carregava com muito esforço um balde, dispersando ao chão metade de seu conteúdo. Já o outro garoto maior segurava pelos ombros a irmã do meio que tentava escapar sem sucesso.
O garotinho menor aproximou-se rindo ainda com o balde na mão, quando chegou suficientemente perto dos dois irmãos, lançou toda a água que ali ainda restara.
Assistindo a tudo, mesmo que sendo de longe, me divertia, até que mamãe voltou ao carro.
- Está tudo bem, ela disse ignorando o espelho. Agora seu rosto estava realmente diferente, seus olhos estavam vermelhos. Na mão, mamãe trouxera um envelope, que na época não entendi bem do que se tratava.
- Tudo ficará bem, ela completou abrindo a bolsa e lá o abandonou. Após feito, ligou a ingnição e deu a partida.
Naquele momento, mesmo sendo muito pequena para entender diversas coisas, eu pude ter a certeza que nem mesmo mamãe sabia para onde íamos.


Mamãe sempre teve o jeito de transparecer que tudo estava muito bem, mas as coisas não tinham sido fáceis depois daquela noite em que vovó nos expulsou de casa.
Mamãe ganhou Julie, e depois do nascimento dela tive de trabalhar.
Estávamos morando há um tempo de favor. Mamãe havia conhecido um cara cujo tinha um apartamento, ele acabou nos emprestando o local, que apesar de não cheirar muito bem, fora o melhor lugar que um dia pudemos morar. Eram apenas eu, mamãe e agora Julie. Apenas nós.
Sempre tive a impressão que as propostas, que mamãe dizia fazer aos caras que conhecia, eram irrecuzáveis; só que passei a ter vergonha delas depois de mais moça. E na época, graças a todo o esforço de mamãe, não nos faltara lar, comida e cama. Já eu não sei se faria o mesmo por meus filhos, talvez eu faria se os tivesse. Mamãe, para mim, sempre fora motivo de orgulho, apesar dos apesares. Já papai, jamais ligara, não dava notícias, mas mesmo assim eu ainda o amava.

₪⌂₪

Aos 15 anos, quando Julie completara quatro, aceitei o emprego numa lanchonete de estrada. Havia muitos turistas, a caixinha era gorda. Aprendi então a usar o cartão de crédito. Nunca havia me vestido tão bem em minha vida. Comecei a trabalhar todas as noites, até mesmo aos sábados. Acordava cedo em dias de semana, ia para a escola, levava Julie para a creche e mais tarde a buscava.
Mamãe tornou-se ocupada, não parava mais em casa. Acabei tornando-me, além de irmã, mãe de Julie. Fora eu quem ensinara à ela as primeiras letras do alfabeto, a escrever seu próprio nome e amarrar os cadarços sozinha.
A vida me ensinou, então, muito depois, o que era ser meio. Julie não tinha o mesmo pai que eu, mas embora nossos pais fossem diferentes, nós tínhamos algo em comum: ambos haviam nos abandonado.
Aos 17, toda a pensão que era vinculada à mim, mamãe a converteu para fins domésticos. Naquela época não senti rancor, mas hoje me sinto roubada.
Descobri um dia que havia, sim, uma diferença entre eu e Julie: ao contrário de mim, ela era bastarda.
Mamãe gastava horrores com ela, - dinheiro que achei que um dia fosse meu, do meu trabalho, minha pensão - até que um dia saindo pra escola, encontrei um envelope na caixa de correio, seu conteúdo era o mesmo daquele dia, o dia em que mamãe e eu paramos o carro na frente da casa amarela.
Lembro-me de ter o apertado entre os dedos. Tinha raiva. A mãe que um dia tivera orgulho, havia engravidado de um rapaz casado, um rapaz que assim como meu pai, poderia ter filhos. Mesmo me sentindo horrível, guardei comigo todo o segredo. Naquela noite não consegui dormir pensando em Julie, e como ela se sentiria se soubesse de toda a verdade.
No dia seguinte acordei mais cedo que o comum, mesmo não tendo descansado direito, acordei agitada, fiz meus deveres de sempre, e mais tarde quando cheguei ao serviço aceitei a proposta de trabalhar tempo integral. Se hoje pudesse fazer diferente, talvez eu não desistiria da escola assim tão bruscamente. Mas pensando bem, na situação em que me constava, não havia outra escolha a seguir, a não ser querer mudar de vida.
Não queria mais que mamãe trabalhasse, não em seu emprego habitual.

4 comentários:

  1. Eu adoro historias assim nunca te disse né?pois bem,historias assim você além de sentir tudo,você para e pensa como se tem uma vida boa!
    Quando eu digo que você tem talento e escrever como gente grande não tô puxando seu saco,mas sim sendo realista.
    E eu ri da tirinha do começo do conto rs e pessoal não é careta não :P
    Beijo Gabs bom Carnaval chuvoso pra ti

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  2. Hum, essa história me lembra muito uma família que morava aqui perto de casa... Era uma mulher com seus 5 filhos que engravidou de mais um. Todos os filhoes dela sofriam, os irmãos mais velhos cuidando dos mais novos. Eu achava a situação mais injusta do mundo. Infelizmente existem pessoas iressponsáveis que além de não pensarem em si também não pensam nos outros...

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  3. Adorei o que li...
    Leve, envolvente e encantador...
    Apesar de ser uma estória triste...
    Me chamou a atenção a maneira que escreveste...
    Amei!!!

    Bjs

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